sábado, 12 de março de 2022

O terreno da infância

Edith Eva Eger
Ela era a terceira filha do casal. Mais de uma vez, ouvira os pais comentando: 
-Poderíamos ter evitado essa. 
À medida em que o entendimento se acentuou, ela pôde compreender que o que eles queriam dizer é que ela não fora planejada. Ela podia sentir isso, todos os dias, no tratamento que recebia. Jamais uma frase elogiosa, de incentivo. 
Para Klara, o gênio da família, que aos cinco anos tocava violino, maravilhosamente, choviam elogios e cuidados. Os pais a enviaram para Budapeste a fim de aprimorar a sua arte, aos cuidados de renomado professor, em um Conservatório. 
Magda, a outra irmã, era pianista. 
Ela, Edith, a última, a raspa do tacho, nada além de críticas. O pai lhe disse, um dia, que desejava que ela tivesse nascido menino. As irmãs, fazendo coro às críticas, criaram uma música para ela: 
-Você é tão feia, você é tão pequena. Nunca vai arranjar um marido. 
Depois de um procedimento cirúrgico malfeito, ela ficara estrábica. Por isso, andava de cabeça baixa e não olhava para as pessoas quando falava com elas. Sua mãe dizia que ela nunca seria bonita. A esperança era que, aos dez anos, ela não teria mais que esconder o rosto. Doutor Klein, de Budapeste, iria consertar seu estrabismo. Apesar de tudo, Edith foi para a escola de ballet e o seu intuito era ser a melhor. Quando sua turma foi convidada a se apresentar em um festival, ela se sentiu maravilhosa. No estúdio, mais de uma vez fora incentivada pelo professor. Só o que ela pensava é que iria brilhar na apresentação e seus pais a iriam aplaudir. No entanto, enquanto sonhava acordada, no trajeto de casa à escola, ela perdeu todo o dinheiro que lhe fora entregue para pagar o trimestre inteiro. Pela primeira vez, ela enfrentou a raiva do pai, que ergueu os punhos e lhe bateu. Nenhuma palavra saiu da boca dele. Naquela noite, em sua cama, Edith desejou morrer. Queria morrer e que seu pai sofresse pelo que fizera com ela. Também desejou que ele morresse. 
* * * 
Esses relatos são verdadeiros, contados mais de setenta anos depois, pela protagonista que, ao registrar suas memórias, escreve: 
"Talvez cada infância seja o terreno em que tentamos identificar nossa importância. Um mapa onde estudamos as dimensões e as fronteiras do nosso valor."
Essa menina se transformou em uma das mais extraordinárias mulheres, e se dedicou a auxiliar outras vidas, através da profissão que abraçou: Psicologia. 
Os relatos de suas mágoas, que demoraram décadas para serem curadas, leva-nos a questionar o que fazemos da infância dos nossos filhos. 
E nos convida a termos olhares mais atentos a todos e a cada um. A lhes descobrirmos as virtudes e incentivá-los ao seu aprimoramento. 
A verificarmos quanto um elogio, um gesto de atenção, uma manifestação de carinho, pode fazer toda a diferença na vida de quem se ensaia para o mundo.
Pensemos nisto: pais e educadores temos grande responsabilidade na formação do caráter dos pequenos que estão sob nossa guarda. 
Esmeremo-nos em nossa missão. 
Em nossas mãos repousa o futuro de outras vidas.
Redação do Momento Espírita, com base no cap. 1, do livro A bailarina de Auschwitz, de Edith Eva Eger, ed. Sextante. 
Em 11.3.2022

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