A vida seguia.
Ele dormia, comia, jogava tênis, trabalhava.
Mas não via graça em nada.
Ele tinha a impressão de que tudo à sua volta ficara plano, sem encanto algum, como se ele se movimentasse numa folha quadriculada e vazia de um caderno de matemática, coberta por quadradinhos iguais e onipresentes.
Um dia, depois de uma viagem, quando ele mal podia respirar dentro de mais um quarto de hotel, já não sabia onde estava, o que fazia ali e nem qual era o seu nome.
Era como se não houvesse mais ninguém dentro do seu corpo...
Procurou uma médica, que lhe foi indicada.
Tratava-se de mulher idosa e sábia daquela região.
Depois de examiná-lo e ouvir as suas queixas, ela lhe disse algo que mudaria toda a sua vida:
-Se alguém pudesse nos olhar do alto, veria que o mundo está repleto de pessoas que andam apressadas, suadas e exaustas.
Também veria suas almas, atrasadas e perdidas no caminho por não conseguirem acompanhar seus donos.
Isso cria uma grande confusão. As almas perdem a cabeça e as pessoas deixam de ter coração.
As almas sabem que ficaram sem seus donos, mas as pessoas muitas vezes nem sequer percebem que perderam a própria alma.
-Como é possível? Será que eu também perdi minha alma?
Perguntou ele.
A ponderada médica respondeu:
-Isso acontece porque a velocidade com que as almas se movimentam é muito menor do que a dos corpos.
Escute. Você precisa achar um lugar só para si, sentar-se e aguardar com paciência a sua alma. Não vejo outro remédio.
O homem estava em estado de choque.
Saiu do consultório, alugou uma casinha pequena nos arredores da cidade e, todos os dias, passou a se sentar numa cadeira, esperando.
Simplesmente esperando.
Passaram-se dias, meses e muitas coisas começaram a surgir em sua mente.
Lembranças de como sua vida era antigamente, lembranças da infância, quando tudo era mais simples.
Barba e cabelo cresceram.
Um lugar só para si.
Foi então que, numa tarde, alguém bateu à porta.
E quando ele a abriu, viu na soleira a sua alma perdida.
Estava cansada, suja e arranhada.
-Finalmente! – Disse ela, sem fôlego.
Ele observou que ela tinha as mesmas feições dele quando menino.
Desde esse dia, tudo passou a ser diferente.
O homem começou a prestar muita atenção para não fazer nada numa velocidade que sua alma não pudesse acompanhar.
Enterrou no quintal todos os seus relógios e suas malas de viagem.
Dos relógios, nasceram belas flores coloridas.
E das malas, brotaram grandes abóboras com as quais ele se alimentou durante todos os invernos tranquilos que se seguiram.
* * *
Esta história se chama A alma perdida.
É da escritora polonesa Olga Tokarczuk, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2019 e leva-nos a refletir:
Quantas vezes nos perdemos de nossa alma?
Quantas vezes nos perdemos de nós mesmos?
Precisamos muito desse lugar só para nós, o lugar do autodescobrimento.
Não sendo assim, a vida perde o sentido.
Pensemos nisso!
Redação do Momento Espírita, com base na obra
A alma perdida, de Olga Tokarczuk, ed. Todavia.
Em 07.05.2024
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