Ela fora levada pelo pai e pela madrasta, para Tianjin, há mais de mil quilômetros da residência da família.
Sempre fora a filha rejeitada.
Mais do que isso, odiada.
Estava acostumada aos maus tratos da madrasta, à total indiferença do pai.
Todos a culpavam pela morte da mãe, alguns dias depois de lhe dar à luz.
Os irmãos a maltratavam porque sofriam o desprezo da madrasta.
Se a mãe estivesse viva, seu pai não teria tornado a se casar.
E eles, como filhos do primeiro casamento, não seriam tratados como indesejáveis, vivendo em cômodo separado da nova família paterna.
No avião, quase chegando ao destino, outro grande baque para a menina de apenas onze anos.
Seu pai se sentou na poltrona vazia ao seu lado e perguntou:
-Como é o seu nome chinês? Preciso preencher o cartão de desembarque e não lembro como você se chama.
Ela era tão insignificante que o pai nem recordava seu nome verdadeiro.
-Realmente, concluiu, não valho coisa alguma. Cada dia, mais me convenço disso.
A pergunta seguinte foi ainda mais devastadora:
-Qual é a data do seu aniversário?
Como ela poderia saber?
Jamais ela tivera uma comemoração pelo aniversário.
Como não soubesse informar, o pai disse que colocaria a sua própria data de nascimento.
Quando chegaram ao destino, ela foi simplesmente deixada no portão de enorme colégio.
Seu pai nem descera do táxi.
A diretora a levou ao imenso dormitório.
Logo ela descobriria que fora abandonada em local perigoso.
Os comunistas haviam derrubado o governo e avançavam.
Os dias passavam tristes.
Ela era a única aluna.
Todas haviam partido, com suas famílias, para outras localidades, temerosas das ações dos vencedores.
Quando Adeline recebeu a visita da irmã de sua madrasta, gelou, pensando em mais maus tratos.
No entanto, o que ela viveu, durante a travessia de navio a Hong Kong, os dias em que conviveu com a tia, lhe fizeram compreender o que significava família.
O irmão ajudava a irmã, tinha carinho para com ela, ensinava tudo que sabia.
Quando, na apertada cabine do navio, Adeline se preparava para dormir no chão, porque somente havia duas camas, ouviu da tia que nada ali era imposto.
Através de um sorteio, foi definido que a prima é quem dormiria no chão.
Era inacreditável.
Ela era tratada como se pertencesse àquele conjunto.
Uma família na qual existia o respeito, a afeição.
Compreensão entre o casal, amizade, companheirismo entre os filhos.
E ela?
Ela era a terceira filha, recebendo tudo o que os primos recebiam: a mesma comida, cuidados, atenção.
Pela primeira vez em sua vida, recebeu carinho, sentiu-se gente.
Não era um lixo que se jogava, literalmente, aos lobos.
Ou seja, no meio de um conflito, deixada à própria sorte.
Acostumada a receber bofetadas em pleno rosto, ao ponto de sangrar, a levar uma surra homérica porque diziam ser mentirosa, naqueles dias, ela viveu o verdadeiro sentido de família.
Algo que levaria para sempre, em sua vida.
E, ao constituir a sua própria, anos mais tarde, traduziria exatamente assim: aconchego, atenção, afeto.
Em uma palavra maravilhosa: amor.
Redação do Momento Espírita, com base
nos caps. 15 e 16, do livro Cinderela chinesa,
de Adeline Yen Mah, ed. Companhia das Letras.
Em 31.3.2023.